8.12.11

Lançamento da antologia de contos ABIGAIL

Neste sábado, dia 10, tem lançamento da antologia de contos ABIGAIL. Participo do livro com o conto "Quando os pinguins deslizam de barriga no gelo". Tem muita gente bacana lá, Marcelino Freire, Andrea Del Fuego, Claudio Brites, Nelson de Oliveira, Márcia Barbieri, Rogerio Guimarães, entre outros autores. Está feito o convite!

13.10.11

A primeira árvore do mundo


Rejeitava os pássaros, tinha ciúmes deles. Queria que a árvore fosse somente sua. Passava os dias empoleirado nos galhos da velha castanheira, observando e devorando pequenos roedores, cachorros-do-mato, quatis, tatus e lagartos. Escolheu o caminho dos animais. “Vou ser ave de rapina”, pensou. Foi a última vez que falou a língua dos homens, depois foi ser. Jessé era o seu nome de homem. E como homem, foi funcionário do MacDonald’s, vendedor de livros usados, vocalista de banda punk: “Os morféticos do passado”. Juntou dinheiro, cursou história. Era apaixonado por Júlia na faculdade.
Ela sabia estabelecer relações entre a guerra fria e o uso das redes sociais na internet como símbolos de eufemismos políticos e interpessoais. Tinha a pele hidratada, morena, um jeito de girar o pulso quando defendia uma ideia que somente ela sabia a exata maneira de executar o movimento. Bebia vodka russa. Discutiam Gogol e Dostoiévski. Júlia dizia que o Tolstoi havia pirado no final da vida com aquele delírio místico anti-literário. Ele discordava, mas não tinha argumentos lógicos para expor uma posição. Jessé estava ali. Abrindo as asas, senhor de sua árvore. Quieto. Concentrado. Preciso. Ágil. Nada estava fora do seu lugar. Um rato por mais ligeiro que fosse não tinha chances contra o seu olhar certeiro de águia. Isso era o que ele se lembrava dos programas da National Geographic. Na faculdade de história havia aprendido a importância do passado para que a memória dos fatos pudesse garantir a consciência do presente.
Mas como ave só conseguia capturar sua presa quando experimentava o aqui e agora. Sua memória humana o traía. A boca de Júlia, sua eloqüência, seu gesto perfeito do pulso, e o rato lhe escapava. Ria dele. A história e a consciência do seu passado faziam dele a mais inábil das aves de rapina. Um ser desajeitado para viver naquele mundo. Presente. Mesmo alguns pássaros menores não o levavam a sério e cochichavam, e caçoavam da sua inaptidão. Lembrou-se que Júlia só sentiu tesão por ele uma única vez. Quando discordaram a respeito da postura pacifista do Dalai Lama quanto à invasão chinesa no Tibet. Ele concordava com o Dalai, ela dizia que era preciso usar a força e expulsar os chineses. Ele irritou-se com a postura violenta dela. Ela beijou-o na boca e ficou nua para ele, mas não deixou que ele se despisse. Apenas que se masturbasse contemplando o seu corpo. Sêmem com vodka.
O rato agora estava mais próximo. E ao invés de distrair-se com a memória do corpo nu de Júlia, Jessé viu no corpo do rato o rosto da amante. Capturou-o. Não o devorou, deixou-o em pedaços. Minuciosamente. Não havia nos restos nenhum sinal de Júlia. Foi a primeira vez desde que chegou ali que conseguira tal proeza. O rato era apenas rato. Um roedor. Um almoço fácil. Esqueceu o seu nome de homem. Esqueceu Júlia. Voou para o topo da árvore e ocupou para sempre o seu lugar de predador.

9.9.11

Reinvenção de Mim



Comprei um chapéu negro

para não ter que mudar o meu nome

Agora levo em minha cabeça

um símbolo que me autoriza

a atravessar as paredes invisíveis

do meu inconsciente


Subo por escadas com jiboias brancas

e mergulho no oceano violeta

pleno de janelas abertas

de onde observo terras benditas

feitas de torneiras pingando lagartas

Dou braçadas nesse mar

e sinto que sou invadido

por todos os orifícios do meu corpo


Dentro de mim moram casulos

de onde nascem mariposas

12.8.11

Meu encontro com Hilda Hilst



Hilda Hilst me indicou a leitura de Mário Faustino. Eu tinha 17 anos quando, por meio de uma amiga em comum, enviei uns três poemas para a apreciação da autora. Eu morava em Santa Bárbara D`Oeste, cidade próxima a Campinas, onde Hilda morava, especificamente na Casa do Sol, seu ashram, seu espaço mágico, que dividia com noventa cães. Em um dos poemas eu pretensiosamente citava Baudelaire. Tinha o livro Flores das flores do mal, com tradução de Guilherme de Almeida. Para espanto de Hilda que comentou: “Ele tem dezessete anos e está lendo Baudelaire? Eu só fui lê-lo quase aos quarenta!”. Confesso que sempre fiz leituras pretensiosas em minha adolescência: Li Sartre, não a obra literária e sim a filosófica. É claro que ficava perdido, mas fingia compreender. O mesmo se deu com a leitura dos poemas de Baudelaire. Conto essa história para dizer que amarelei, sei lá, não tive coragem de visita-la. Aconselhado por minha querida amiga, ela me disse: “É só levar um bom vinho que ela te receberá com muito prazer”. Eu enrolei e nunca fui. Perdi a chance. Eu era um menino assustado com anseios tímidos. Fiquei cheio de medo daquela senhora. Não fui. Cresceu o mito Hilda em mim.
Agora estou relendo Hilda, apreciando sua linguagem rasgada, meteórica e misticamente erótica. Hilda aproxima-se da linguagem para alcançar Deus. A força de seu trabalho é este: o exercício da linguagem que transcende. Por isso, logo me apaixonei pelos seus livros, por sua figura e seu entorno. E ao reler os seus textos, percebo o quanto estava e ainda estou ligado espiritualmente aos seus livros. A experimentação em Hilda não acontece apenas pelo compromisso estético e sim pelo desejo de encontro com o divino.
Desde aquela época li apenas alguns poemas de Mário Faustino. Nunca mergulhei em seus poemas. Escrevo esta reflexão para dizer que o desejo de conhecê-lo, assim como rever a produção literária de Hilda cresceram em mim. Acho estranho tudo isso e prefiro que o estranhamento me tome ao invés de explica-lo com clareza. A verdade é que os meus textos não se aproximam em nada do estilo de Hilda, mas a minha afinidade com ela é para além da escrita, está mais próxima do universo que ela criou em sua vida, de seu despojamento, de sua radicalidade e entrega para o ato de criar.
Talvez o trecho deste poema (Vida toda linguagem) de Mário Faustino faça-me compreender a indicação de Hilda:
“Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias
Vida toda linguagem”

Ao ler os meus poemas tão imaturos, Hilda talvez quisesse me dar o seguinte recado: se este é o seu caminho, saiba que a sua vida será ou poderá ser uma experiência plena de existência e linguagem, neste caminho só o ato de escrever poderá te salvar. Agora o que sei de Hilda, ela não saberá que sei. Mesmo sem saber, Hilda participou e participa de minha formação e jornada como escritor e como ser humano. Salve, Hilda, Salve! Para sempre a Morada do Sol.

8.8.11

Como comecei a escrever ou Comungar a existência por meio das palavras




Comecei a escrever depois que fiquei trancado, por uma noite, na biblioteca municipal da pequena cidade onde nasci. Eu tinha 11 anos e os livros me atraíam de maneira irracional. O objeto em si me fascinava antes de saber da potência das palavras contidas nele. Naquela madrugada os livros me serviram de travesseiro e cobertor, me deram abrigo e contaminaram o meu corpo; foi a minha primeira polução noturna. Primeiro a biblioteca foi meu refúgio, depois lugar de mistério em busca do enigma de ser. Minha paixão pelas palavras é física, minha imaginação está na pele e nos músculos, minha respiração capta os hiatos, os silêncios que podem significar mais do que qualquer significado aparente. Não sinto a literatura como algo simplesmente mental, as palavras são minha tentativa espiritual de me comunicar com os primeiros contadores de histórias, o invisível real e presente. Nesse sentido, a palavra é reveladora e só consigo contar uma história na atitude vital da escrita, e só consigo saber o que escrevo enquanto escrevo, tenho muitas vezes a sensação de espanto ao descobrir o caminho que se vai construindo, os saltos e saídas de um texto, o desejo de um personagem. A palavra que transforma, deforma, transcende e imana de si um segredo, uma sabedoria. Escrevendo é que sei o que quero ou o que posso dizer. E posso tudo. Como escritor, sinto que carrego o risco e o encanto de invadir a alma humana por meio da linguagem, de ferir e ser ferido, de amar e ser amado, e confesso ter imenso prazer nesse ato profundamente sagrado e profano, cósmico e cotidiano, denso e banal. É deste modo que aprendi a explorar o mundo e a existir nele. A experiência de viver no mundo, para mim, está intimamente atrelada à experiência da escrita, ao ato de sentar e escrever. Portanto, escrever para mim é experiência direta com a realidade e não fantasia, mesmo que o absurdo e o fantástico possam estar presentes, a escrita é real. Ato criador. Confesso não salvar-me longe do ato de escrever e da atitude subversiva de ler poesia e prosa. Penso na arte, de maneira geral, como espaço de possibilidades, de saber ser, saber o outro, saber curar e ser curado, saber viver, saber morrer, saber reinventar-se, saber revelar-se e revelar. Espaço de mergulho na ordem e no caos. A arte só é possível no impossível, sem medidas, sem fronteiras, sem demarcações, sem carimbos.
Ao lembrar-me agora daquela noite na biblioteca, penso que não foi o acaso que me deixou trancado lá, sozinho, foi a minha vontade íntima, e até então desconhecida, de fazer parte desse universo enigmático de comungar a existência por meio das palavras.

Imagem: Philip Guston