13.10.11

A primeira árvore do mundo


Rejeitava os pássaros, tinha ciúmes deles. Queria que a árvore fosse somente sua. Passava os dias empoleirado nos galhos da velha castanheira, observando e devorando pequenos roedores, cachorros-do-mato, quatis, tatus e lagartos. Escolheu o caminho dos animais. “Vou ser ave de rapina”, pensou. Foi a última vez que falou a língua dos homens, depois foi ser. Jessé era o seu nome de homem. E como homem, foi funcionário do MacDonald’s, vendedor de livros usados, vocalista de banda punk: “Os morféticos do passado”. Juntou dinheiro, cursou história. Era apaixonado por Júlia na faculdade.
Ela sabia estabelecer relações entre a guerra fria e o uso das redes sociais na internet como símbolos de eufemismos políticos e interpessoais. Tinha a pele hidratada, morena, um jeito de girar o pulso quando defendia uma ideia que somente ela sabia a exata maneira de executar o movimento. Bebia vodka russa. Discutiam Gogol e Dostoiévski. Júlia dizia que o Tolstoi havia pirado no final da vida com aquele delírio místico anti-literário. Ele discordava, mas não tinha argumentos lógicos para expor uma posição. Jessé estava ali. Abrindo as asas, senhor de sua árvore. Quieto. Concentrado. Preciso. Ágil. Nada estava fora do seu lugar. Um rato por mais ligeiro que fosse não tinha chances contra o seu olhar certeiro de águia. Isso era o que ele se lembrava dos programas da National Geographic. Na faculdade de história havia aprendido a importância do passado para que a memória dos fatos pudesse garantir a consciência do presente.
Mas como ave só conseguia capturar sua presa quando experimentava o aqui e agora. Sua memória humana o traía. A boca de Júlia, sua eloqüência, seu gesto perfeito do pulso, e o rato lhe escapava. Ria dele. A história e a consciência do seu passado faziam dele a mais inábil das aves de rapina. Um ser desajeitado para viver naquele mundo. Presente. Mesmo alguns pássaros menores não o levavam a sério e cochichavam, e caçoavam da sua inaptidão. Lembrou-se que Júlia só sentiu tesão por ele uma única vez. Quando discordaram a respeito da postura pacifista do Dalai Lama quanto à invasão chinesa no Tibet. Ele concordava com o Dalai, ela dizia que era preciso usar a força e expulsar os chineses. Ele irritou-se com a postura violenta dela. Ela beijou-o na boca e ficou nua para ele, mas não deixou que ele se despisse. Apenas que se masturbasse contemplando o seu corpo. Sêmem com vodka.
O rato agora estava mais próximo. E ao invés de distrair-se com a memória do corpo nu de Júlia, Jessé viu no corpo do rato o rosto da amante. Capturou-o. Não o devorou, deixou-o em pedaços. Minuciosamente. Não havia nos restos nenhum sinal de Júlia. Foi a primeira vez desde que chegou ali que conseguira tal proeza. O rato era apenas rato. Um roedor. Um almoço fácil. Esqueceu o seu nome de homem. Esqueceu Júlia. Voou para o topo da árvore e ocupou para sempre o seu lugar de predador.

5 comentários:

Laura Fuentes disse...

Tem gente que vem para ser águia, outros para ser rato, mas no fundo, somos todos predadores. Muito bom!

Brontops disse...

Muito bom.

Tiago Bode disse...

massa, doideira malufiana!

Marcelo Maluf disse...

Gracias, meus queridos,pela leitura!!!

Mônica Cyrillo Blum disse...

Incrível!


Imagem: Philip Guston