27.6.12

O texto literário como fonte de mistério

O que em comum tem autores como Clarice Lispector, Hilda Hilst, Raduan Nassar, Hermann Hesse, Adélia Prado, João Gilberto Noll, Antonio Lobo Antunes, entre outros?
A questão pela qual levantei os nomes desses escritores tem a ver com a dimensão espiritual, metafísica e existencial de suas obras, com sua mística, seu mistério. A escrita literária como autoconhecimento. Temas recorrentes na história da literatura. Neles a linguagem ganha tom de experiência com o sagrado, o transcendente, o não comunicado que se revela no entre. Esse meu devaneio é de (des)ordem subjetiva, não tenho como concluir nem provar nada, apenas sentir. Parto aqui da minha experiência como leitor e escritor.
A arte de escrever não precisa nem deve estar relacionada a um tema que consideramos como maior. Mas “penetrar surdamente o reino das palavras”, como diz o poeta, deve ser um ritual, uma comunhão, um encontro. E isso não significa que todo ritual deva ser algo localizado no extraordinário. É no ordinário que as coisas sofrem grandeza e desnudam a existência. Nos poetas, essa relação espiritual e mística talvez seja mais recorrente do que nos prosadores, lugar de invenção, de risco e desorientadora natural da razão que é a poesia. O ritual cotidiano de Rubem Braga, por exemplo, com suas crônicas assume aquilo que chamo de exercício transcendente com a linguagem. Em Rubem as coisas não ditas saltam da página e abraçam o leitor. Clarice Lispector é precisa ao dizer: “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu” (Água Viva, p. 25). O que é escrito com a não-palavra cria o mistério no texto, o que não se sabe, mas é captado pelos sentidos. O sagrado é um modo de se relacionar com a palavra, é uma forma de oração, um rito, um fluxo quântico, de consciência, e isso também não significa ser hermético ou abstrato, nem sem enredo ou história que se conte. Tudo isso está presente de maneiras diferentes nos autores que citei logo no início dessa reflexão. Não se trata do que narrar e sim do como acontece à experiência com a palavra. O gesto narrativo. Não é necessário falar de Deus para que um texto seja dessa envergadura. Quando se lê Hilda Hilst sabemos que a razão em si não consegue captar o que é dito nas entrelinhas e nas imagens oceânicas que cria. O erótico em Hilda é um assombro tântrico e místico no jogo de sua linguagem e, por isso, não se banaliza.
Creio que a literatura produzida por esses autores tem a capacidade de cuidar, de cicatrizar feridas, dores, fissuras da alma, de curar da ignorância de nós mesmos. Se lidos em seus hiatos, no vazio Zen dos seus textos, podem revelar um estado de iluminação no leitor. Começam a dizer o indizível, a visualizar o invisível. Dessa natureza criadora é que contempla o leitor, o vestígio da experiência da escrita: as palavras que podemos lê-las.
Nenhum desses autores teve essa pretensão, ou ao menos não declarada, nenhum deles quis ser um xamã ou um curandeiro-escritor, mas todos, sem exceção, invadiram o misterioso território do verbo que se fez carne, ritualisticamente, se inscreveram como sábios no universo da imprecação mística da arte de escrever. Nesse sentido, não são maiores nem menores que nenhum outro ser humano, apenas existem na potência daquilo que são: escritores. E por terem acolhido essa missão resignados em suas existências é que puderam compreender a palavra como desígnio sagrado a penetrar o processo de criação de seus contos e romances. Bebendo na fonte de todo mistério.


Originalmente publicando em: http://terracotaeditora.com.br/?p=1243

Imagem: Philip Guston