7.11.13

O silêncio da Jabuticabeira

Personagem em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
            Esses peixinhos, esses dóceis e inocentes peixinhos. Dona Clarice os matou. Ela me jurou que foi sem querer. E Clarice já me salvou tantas vezes que não consigo acreditar que ela esteja mentindo. Todas as vezes que eu precisei, ela me disse sim. E sempre dissemos sim uma à outra. Fosse para um pouco de açúcar, um pó de café ou o mistério de uma palavra perdida em mim. Há muito tempo que somos vizinhas. Clarice nunca me negou nada. Como é que pode alguém, propositalmente, matar criaturas tão frágeis? ela disse. Seria completamente diferente se os mesmos peixinhos fossem abocanhados por tubarões em alto mar, lá é assim que se vive, não é? É natural que seja assim. Sempre achei digno morrer para servir de alimento ao outro. Se eu pudesse escolher a minha morte, gostaria de ser devorada por uma jibóia branca às margens do Rio Negro.  Mas aqueles peixinhos pareciam o Nemo. Não é justo que tenham morrido em vão dentro de um aquário. Não foi por mal, Dona Clarice se distraiu e deixou tempo demais os peixinhos sem comida. É isso que dá ficar transportando essas lembranças.
Personagem em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Se vocês morassem aqui na minha cabeça, saberiam o que eu estou dizendo. Essas coisas, esses objetos e livros que estou carregando, de lá pra cá e de cá para lá. Todos têm o seu lugar certo, o seu jeito de caber no tempo e no espaço. O difícil é saber qual é o lugar de cada coisa. Em qual lugar cada um desses objetos é mais inteiro, mais pleno, mais potente? “A insustentável leveza do ser”, do Milan Kundera, sempre me coube aqui no meu abdômen, às vezes desce e se aloja a quatro dedos abaixo do meu umbigo. Eu gosto de pensar que me encaixo no intervalo entre esse meu corpo e a minha sombra, e vivo como se estivesse deitada numa pedra numa montanha da Ucrânia. É que eu sempre quis conhecer a Ucrânia. Já perceberam quanta gente interessante vem de lá? Depois me levanto e exatamente ao meio dia eu consigo ficar mais completa. Era assim que eu me deitava debaixo daquela jabuticabeira e ficava esperando as bolinhas negras caírem sobre mim e me fazerem cócegas. Ali espichada na grama eu sonhava com o meu futuro, com as diversas possibilidades de ser: bióloga, atriz, manicure, taróloga, professora, cantora, psicóloga, jornalista da National Geographic. Sempre me foi difícil pensar em mim como uma peça única, sempre me percebi muitas.
Personagem em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Quem está aí? É você? Ela sempre faz isso comigo. Minha sombra sempre me assusta, me ASSOMBRA. Que é que foi? É você de novo? Olhe aqui, você nem é capaz de me encarar, não é mesmo? Olhe pra mim e vê se me deixa. E daí eu subia no pé e espremia com meu corpo os galhos lotados de jabuticabas e outras eu caçava com a boca. E lá de cima eu assistia minha sombra chorando no chão, depois minha avó me chamava e me sentava no colo pra me dizer que eu tinha os olhos grandes como jabuticabas. Depois ela fazia a melhor geleia de jabuticaba do mundo. Hoje quando eu vou ao cinema, ao teatro ou a alguma exposição, procuro aquele gosto, aquele sabor. Esse é o meu parâmetro estético. Se tiver aquele gosto eu sei que é bom. Ou se as jabuticabas aparecerem em algum lugar. Foi assim que eu me apaixonei pela performance do Joseph Beyus com o coiote. Não foi pela ousadia ou pela dimensão poética da ação, foi por que os olhos do coiote eram duas pequenas jabuticabas, e naquele gesto havia um risco, algo desconhecido que poderia irromper do instante e mudar o curso das coisas. Por isso é que eu gosto de mudar as coisas de lugar, gosto dos oceanos agitados e do movimento bruto das tempestades, dessa força que vem sei lá de onde. Gosto de afogar as mãos na terra úmida, de consertar portas, parafusar janelas, perfurar metais, cortar galhos de árvores velhas, tirar restos de cabelos do ralo, fazer tudo com ações precisas, para desafiar a lógica do meu ser, e encontrar nos gestos mais simples do cotidiano minha grande alma. Talvez minha grande alma seja uma velha bruxa descalça comendo jabuticabas e cuspindo as cascas na terra para servirem de adubo. É isso. Talvez eu seja o conjunto das cascas cuspidas por uma velha bruxa descalça. E com essa consciência de casca eu percebo que fico despejando os meus desejos para lá e para cá, para cá e para lá, tentando encontrar o lugar exato no tempo e no espaço onde eles possam viver para sempre, como esse abajur.
Personagem em movimento contínuo, levando objetos de um lado para o outro.
Queria que a Dona Clarice fosse a minha avó, e que todas as gavetas do meu corpo estivessem abertas como as gavetas da Vênus, do Salvador Dalí. E, aos poucos, eu fosse tirando as minhas miudezas de dentro das gavetas para usá-las como colar ou pulseiras.

Tive uma ideia outro dia que ficou em minha cabeça: fazer uma escultura da minha sombra, com jabuticabas. Depois de pronta, eu abraçaria a escultura até sentir as bolinhas negras explodindo. Com o líquido que escorresse eu faria uma calda doce e quente. Nua eu me banharia da cabeça aos pés, até que a sombra grudasse em meu corpo, até que eu compreendesse que a sombra sou eu. Até que eu não me assombrasse mais.

                                                                             (publicado originalmente na Revista Vermelho)

Imagem: Philip Guston